sexta-feira, agosto 05, 2022

Sobre a minha poesia - escrito por Henrique Manuel Bento Fialho


 Dois livros de António Ferra , próximo convidado de Diga 33 – Poesia no Teatro. Dia 27, às 21h30, na sala

 Estúdio do Teatro da Rainha.

Dois livros bastante diferentes um do outro, publicados ambos este ano: “A Poesia Ri Unida” (Eufeme, Maio de

 2022) e “Lengas e Narrativas” (Edições Húmus, Junho de 2022). Comecemos pelo primeiro. Tal como o título

 indica, num humor desimportantizante característico do autor, trata-se de uma reunião, não da obra anteriormente

 editada em livro, mas de poemas dispersos por revistas publicadas entre 2009 e 2021. A excepção é um inédito

 intitulado “Dores”, poema pungente em que o mal-estar contagioso da actualidade vem à tona com fúria

 desmedida: «e eu sem potência para apagar filhos da puta» (p. 37). Não é comum nesta poesia temperaturas

 coléricas tão elevadas, sendo mais frequente o recurso ao riso enquanto sabotagem da realidade decadente e de

 um quotidiano pulverizado de personagens por vezes picarescas, noutras ocasiões risíveis, amiudadamente

 desvalidas. Portanto, a poesia que ri neste volume transborda os domínios da ironia e da sátira reconhecíveis

 noutros momentos da obra de António Ferra (n. 1947). Mantém-se, no geral, a paisagem suburbana enquanto

 palco privilegiado das observações do sujeito poético, mergulhado num “modo funcionário de viver” onde

 recolhe quadros de uma actualidade estrangeirada. O teatro é o da «tirania / num campo de refugiados

 suburbanos» (p. 11), por vezes em poemas sequenciais que retratam com linguagem militantemente coloquial 

«o constrangimento dos sonhos, / a severidade das sombras» (p. 48).

Dá-se especial atenção nestes poemas aos pobres, aos excluídos, aos exilados, aos humilhados e ofendidos, a essa

 massa de gente infinda usada e usurpada pelas forças que dessa gente se servem esgotando-a, tornando-a

 impotente e incapaz. É curioso, mais ainda pela dispersão inerente ao conjunto, como em diversos destes poemas

 surge essa imagem de fraqueza que vai do sentimento de «culpa de não combater» (p. 11) à falta de «voz para

 gritar a injustiça» (p. 48), desembocando no apelo quase desesperado do poema “Contaminação”: «não feches o

 riso / que se abre nas tuas mãos abertas, / não feches o grito de revolta / quando a janela se abre aos odores de um

 fogo extinto» (p. 52). Uma dúvida a esclarecer: o riso é arma ao serviço da revolta ou solução para a impotência?

Bem diferente, em todos os aspectos, é o segundo livro acima aludido, introduzido por uma explicação prévia à

 laia de prefácio: «Trata-se de poemas com deliberada intenção de trazer à luz os mais sombrios actos criativos —

 e caritativos — das palavras, dançando ao ritmo cardíaco dos versos estampados, não negando, todavia, a forte

 influência de uma corrente barroca, e neoclássica, surrealmente presente nos critérios de recolecção dos versos

 que integram a antologia “lengas e narrativas”». Neste caso, o espaço de representação confunde-se com a pura

 experimentação formal. Mais maneiristas do que barrocos, estes poemas afirmam-se pelos desequilíbrios, pelos

 exageros expressivos, aqui grotescos, acolá burlescos, gozando de uma variedade (in)formal que vai da

 redondilha à canção. São experiências lúdicas com palavras, a linguagem poética cedendo ao gozo dos efeitos

 fonéticos — «a salsugem dos barcos / a penugem dos braços» — e polissémicos, jogo que não prescinde do seu

 inventário intensivo de caricaturas: «o pobre de porshe» (p. 10), «o rico sem cheta» (p. 12), «os ais obscenos / de

 suínos urbanos» (p. 31), «o mendigo enganado / o bardo e o frade / de cotão no umbigo / e espinho do cardo // o

 carneiro inchado / a donzela porreira / de seio fanado / e liga de freira // o cilício de nastro / o amante filtrado / o

 cu de alabastro / da alcoviteira» (p. 41).

Ao barroco foi António Ferra buscar certa pompa para a desmontar e desfazer ironicamente, nomeadamente ao

 minar modelos métricos, ao grafitar o luxo das imagens com o corriqueiro, apostando em conceitos rebuscados e

 títulos extensos: «de autor anónimo (sec. XVIII) publicado na Gazeta «O Furjão» em depósito na biblioteca da

 Junta de Freguesia de Albergaria de Loivã» (p. 33). Tudo isto é escárnio da pompa e da circunstância, dos efeitos

 supérfluos e palavrosos, da cagança espaventosa e da solenidade que, em pleno século XXI, se conserva intacta

 no espírito e nos comportamentos de uma horda de artistas eximiamente distribuídos pelas diversas instituições

 nacionais. Fique, a título de exemplo, a «efémera fama de um opinion maker»:


a efémera fama

tua alma aclama


na tua lama

a tarântula branca

anémona plana

numa feira franca


tua alma acalma

a efémera fama

abre o melodrama

alimenta a chama

da boca que trama


tua alma aclama

a tua boca brama

tua efémera fama