quarta-feira, julho 03, 2024

A leitura dos Jogos telúricos pelo Victor Oliveira Mateus


 

Haverá, seguramente, quem considere que o mais interessante no último livro de António Ferra (Jogos Telúricos (um fio de nylon em pleno deserto), Húmus, 2024) é o seu aspeto burlesco e, até mesmo, histriónico. Sem, de modo agradado, deixar de considerar igualmente esse aspeto interessante, a mim, o que mais me prendeu foi a técnica a que os poemas eram submetidos, e no seio desta a musicalidade, foi de tal modo intensa esta constatação, que, sem me aperceber, dei por mim a salmodiar a leitura, o que, obviamente, me fez lembrar um episódio que Alberto Manguel narra no seu "Uma História da Leitura", quando um frade entra numa sala e se apercebe, estupefacto, que Sto. Agostinho lia em silêncio; pois comigo seria ao contrário: ele ficaria siderado, sim, mas por me ver entregue a um audível - e musical - silabar. Armado em jogral, concluí a leitura em voz alta! Um dos exemplos, para mim, mais conseguido é o extenso poema "a vaca de fellini " (pp 33-38): longuíssimo poema construído "ao sabor do ritmo" por: tercetos, quintilhas, oitavas e nonas... A tudo o poeta deita mão: não só no que diz respeito às estrofes: também a métrica "deambula" entre as 4 e as 7 sílabas -fazendo-nos lembrar todo um continuum da História da Música que vai de Richard Strauss a Webern e a Alban Berg. Outro aspeto que me agradou de sobremaneira, que se articula com o anteriormente dito, é o modo como Ferra joga com as palavras, mas sem a gratuitidade do muito que anda por aí - aqui há um fito específico: enfatizar o dito na sua relação com o cómico e com o melodioso - exemplo: "a eu foria/ no bangla desh/ é a teimosia/ da manu factura// como a sádica néscia/ de etimologia/ que nada bom augura"(p 40). Como se vê, aqui os procedimentos rimáticos acentuam a já referida musicalidade.
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" de liga na faca"
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charco de raiva na rua descalça
febre na cama
a angústia nas pernas
de um polícia à paisana
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o fascista de rede em profunda surdez
com música sacra e pénis redondo
morre outra vez
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o vate formoso de liga na faca
é um bebé talentoso
que esconde a vergonha
do mênstruo da vaca
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(Op. Cit., p 45)
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