DOS LIVROS LEVANTA-SE UM PÁSSARO
Recensão critica Expresso, 3 de Junho, 2017
Por José Mário Silva
Há uma estrofe que
capta muitíssimo bem o lugar do sujeito poético neste livro: “Um gajo pensa que
vai cair,/ assenta os pés em desequilíbrio,/ mas não cai, fica alia baloiçar/
de vara nas mãos,/ à procura do centro de gravidade.” Embora periclitante, o
corpo mantém-se erguido, vertical, sobrevivendo como pode às saraivadas de um
tempo que se mostra hostil. A escrita de António Ferra é a materialização desse
ato de resistência às sujeições da ordem social, à “vida amarga” e ao “ruído da
tristeza”, à vertigem do mundo digital e à ditadura do zoom que nos escrutina
até ao mais ínfimo detalhe. Contra aqueles que “lixaram esta merda toda”,
apoiados no “medo que ainda arde”, esta poesia defende a liberdade da
imperfeição e do passo em falso, o “sabor descalibrado” dos frutos e a “alegre
intromissão de certos bichos”. Em quase todos os poemas, ressoa a melodia
melancólica da perda. Já nada corresponde ao que foi, o “sol deixou de nascer
no sítio do costume”, as orquídeas murcham nas jarras, “os limões perderam a
acidez”. Incapaz de compreender a História, o poeta olha para dentro: “Apenas
vejo o meu pequeno pátio interior/ com um guarda-sol destruído, uma moeda de
prata/ e as mesmas cores do silêncio”. A memória é um bálsamo, quando convoca a
gasosa bebida na infância, cheia de gás e açúcar (“Quando se abria a garrafa,/
abria-se o mundo em bolhas de sol”), ou um velho amigo “com quem ia ver o fumo
dos comboios sobre o rio”. Não há, porém, sequer uma sombra de desistência,
antes vontade de colocar pauzinhos na
engrenagem e sonhos altos, como o de escalar uma montanha “com cordas de
seda fina”. A clarividência, aqui, nasce sempre de uma “clara evidência”. Como
atestam estes versos: “Afiava enxadas para cortar a neblina/ sobre searas à
mercê de químicos/l e ficava pela madrugada fora,/ de navalha na mão, / desenhando
corações atravessados/ porsetas nos troncos das árvores”.
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