Dos pássaros levantados e
outros voos
Há muitos anos, no tempo em
que sonhos não obedeciam às leis do mercado, houve uma espécie privilegiada de
homens e mulheres que aprendeu a voar. Dirão alguns que as pessoas não voam, só
os pássaros e as abelhas e os aviões são capazes de fazê-lo, mas não é verdade:
há quem queira e consiga voar, voar mesmo, desafiando as leis da gravidade e da
lógica do mundo.
O António Ferra faz parte
desta espécie particular de gente que não se conforma com o que dizem ser o
destino, nem se preocupa em viver de acordo com as tendências do momento.
Escreve o que quer, como quer, e é assim que tem feito um caminho que é o dele,
discreto mas consistente como conheço muito poucos. Esta é a sua forma (uma das
suas formas) de voar.
Das maiores mentiras que nos
contam desde há séculos é essa história de sermos “um país de poetas”. Tretas.
Sim, é verdade que tivemos Camões, tivemos Pessoa, tivemos Cesário e O'Neill e
Eugénio e Herberto, tivemos Guerra Carneiro e Assis Pacheco, ainda temos Alberto
Pimenta. Temos, de facto, poetas maiores, mas que só o foram por terem sido
capazes de pensar e sentir e viver para lá das fronteiras, quer as do país,
quer sobretudo as das cabeças que vivem nele.
É isso que o António Ferra
também faz, através de uma escrita clara e singular, mas nunca circular. O
segredo desta escrita, da escrita do António, é que não tem segredo nenhum. São
palavras diárias e comuns que ele modela com toques de magia e transforma numa
poesia incomum.
E é por isso que ele é hoje
uma voz única, que não procura sobrepor-se às demais – embora esteja acima da
maioria delas. Como quando escreve:
Às vezes, dos livros
levanta-se um pássaro,
um tanjarro, uma carriça,
um papa-figos,
uma codorniz ainda
selvagem,
à espera que lhe estudem
a morfologia, origem e
destino
à espera que lhe expliquem
a mutação das penas.
António Ferra, o poeta e o
cidadão, não quer ser capa de revista e não está disponível para a passerelle
das pequenas vaidades em que se se habituou a viver uma parte não despicienda
do nosso mundinho literário. Em vez disso, porque isso é que importa, procura
insistentemente descobrir o “triângulo de quatro lados” de que falava Alberto
Pimenta.
Claro que nada disto é novo
para os amigos do António, que se habituaram a conviver com os livros que ele
vai publicando, com aquele ar displicente de quem não se leva muito a sério –
muito embora esta seja poesia da mais séria que conheço. Por exemplo:
Um gajo está desesperado
com uma dor na alma,
um navio atracado no
peito,
e procura desesperadamente
um analgésico,
um comprimido mágico que
traga a felicidade
por cinco minutos.
O pior são os efeitos
secundários das metáforas.
Este livro, com este
belíssimo título – “Dos livros levanta-se um pássaro” – são quarenta poemas do
António Ferra que nos contam a vida, sem metáforas esdrúxulas nem palavras
ocas.
Mas um livro também é um
objecto, e neste caso um objecto muito bonito também, feito naquele jeito
minimalista a que o António nos habituou, tanto na escrita como na pintura,
para que no fim fique apenas aquilo que tem mesmo de lá estar. Isto, que parece
tão simples, é afinal o mais difícil da arte – isto é que é o verdadeiro
mistério da criação.
Posso dar alguns exemplos, a
partir deste livro. Diz o António, na página 36:
Ferem-me os olhos
incolores dos gatos
com três pernas.
Assim ficaram depois do
santo ofício ordenar
a oposição entre a água e
o fogo.
E noutro poema, mais adiante:
Aconselharam-me a meter a
metafísica no rabo,
porque Nada é verdade,
os cães morrem a mesma
morte ao longo dos séculos
e o Amor é sepultado ao
lado da Fome.
E noutro poema ainda:
Já lixaram esta merda toda
na
intransigência dos
costumes,
na continuidade dos dias
sem retorno
ao vôo das árvores
migratórias.
Estes são apenas alguns
fragmentos desta poesia sem lantejoulas, feita à medida do mundo, mesmo que não
necessariamente a gosto do mundo.
Mas o melhor é lê-la, que é
para isso que a poesia é feita. Este livro lê-se depressa, mas está longe de
ser um livro apressado. Pelo contrário, é mesmo escrita de quem gosta de se
demorar – sempre atento ao “funcionamento de pequenas coisas”.
Diz o António:
Perdi um pedaço de terrra
com árvores milenares e
rios à alegria.
Mas ainda não desisti da
escalada da montanha
com cordas de seda fina.
O segredo, digo agora eu, o
segredo é capaz de ser mesmo só isto: não desistir, nunca desistir da “escalada
da montanha”. Que é como quem diz: não desistir de procurar o tal “triângulo de
quatro lados”.
E o António, já sabemos, é um
desses que não desistem. Afinal, ele faz parte dessa espécie privilegiada e
rara de pessoas que aprenderam a voar. E isso, felizmente, é coisa que não tem
remédio.
Por isso, António, continua,
por favor. Nunca deixes de voar, nunca deixes de te inquietar com as pequenezas
do mundo. Dos livros levanta-se um pássaro, e nós com ele, certos da verdade
toda que há nestes versos.
Ou, como ele escreve:
Mas alguém há-de aparecer,
podem contar comigo,
sou um gajo trabalhador,
leal e de bom trato,
juntem-se à minha sorte a
renascer.
Viriato Teles
20.Maio.2017
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